25/10/2010

A INQUISIÇÃO PORTUGUESA: O COMEÇO DA MATANÇA

A matança dos cristãos-novos
em Lisboa no reinado de
D. Manuel I -
Desenho de Manuel de Macedo.
Entretanto, se, por um lado, tinha afrouxado a intolerância na corte de D. Manuel, por outro lado, o povo sempre excitado pelo fanatismo dos padres, avolumava-se em ódio ao hebreu. O frade, sem distinção, a Igreja toda, não se amainava na suspeita, senão vendo os Judeus todos em cinzas. Por um certo orgulho de raça, ofendia os Hebreus o faço de não serem admitidos em certos cargos e dignidades, só por serem Judeus. E tanto mais nesse sentimento se doíam, quanto era certo que detinham o melhor da riqueza nacional. Quer, por conseguinte, em virtude desta circunstância de amor-próprio magoado, quer também muitas vezes pelo terror das perseguições, abandonavam alguns as crenças de seus pais… Tomavam então o nome de cristãos-novos, como temos visto; e o povo chamava-lhes “conversos”, “confessos”, “marranos”, termo que correspondia a maldito; e os próprios Judeus chamavam-lhes, entre nós “tornadiços”, isto é, renegados.
Quando lhes passava o medo ou já tinham satisfeitas as ambições, arrependiam-se de ter abjurado e, em segredo, retomavam as práticas judaicas.
Mantivessem-se, porém, ou não, no rito cristão, fossem convertidos ou por converter, judeus ou marranos, estavam sempre sob o ódio católico. Era este ódio santo da Igreja que os padres sopravam à alma ignorante e supersticiosa do povo. Era este ódio que o povo, apesar do arrependimento verificado na Corte, votava tenebrosamente ao judeu, não acreditando na sinceridade dos conversos e até considerando, como a maior das blasfémias, a prática dos ritos cristãos por eles e as orações que lhes saíam dos lábios heréticos…
Ao passo que os católicos-padres atiçavam mais piedosas cores, perante o Céu, o exemplo da Espanha na defesa da fé. Alentavam a propaganda… Iam tecendo a malha apertada em que se havia de aviltar o brio nacional… E já se falava sem rebuço na necessidade, para Portugal, da Inquisição à maneira espanhola!
Inquisidor-Geral Nuno Cunha
(Gravura da época)
Os cristãos-novos ouviam e estremeciam intimamente de terror, pressentindo no ambiente os terrores de tamanha desgraça. Os mais cautelosos e opulentos trataram logo de se preparar para se porem a salvo. Fizeram-no, porém, com tanta precipitação, alienando propriedades e transferindo, por meio de letras de câmbio, os dinheiros, que imediatamente se desconfiou deles.
Tomaram-se logo medidas proibitivas de câmbios com os cristãos-novos sobre mercadorias ou dinheiro e ordenou-se a denúncia dos que já tivessem sido feitos, no prazo de oito dias. Além disso, determinou-se que ninguém lhes podia comprar sem licença e que nenhum podia sair do Reino com mulher, filhos e casa, sem autorização expressa de el-rei…
A 15 de Abril de 1506 – domingo – fizeram-se preces públicas contra a peste que içava Lisboa e lhe dizimava a população. Houve procissão de penitência da Igreja de Santo Estêvão para a de S. Domingos, celebrando-se nesta, por fim, preces solenes. No alto da capela de Jesus, sobre um crucifixo que ali havia, julgou ou fingiu alguém ver um reflexo. Nestas ocasiões há sempre muita gente que vê tudo o que lhe dizem. Mas também os há que não vêem nada de extraordinário. As beatas e os supersticiosos disseram logo em gritaria que era “milagre”. Dos que duvidavam, um cristão-novo disse que, se existiu algum reflexo, só podia ter vindo das luzes acesas ao pé. Mal o desgraçado tais palavras proferiu, o povo, todo em alvoroço, arrastou-o até ao Rossio, linchou-o e queimou-o.
Trecho de uma gravura representando um
Auto-de-Fé em Espanha
no século XVII
Podia talvez o caso não ter ido longe de mais, se houvesse realmente na Terra, em Portugal, em Lisboa, no Rossio, na Igreja de S. Domingos, algum modesto representante dos companheiros de Jesus de Nazaré. Mas não havia. Houve simplesmente dois frades dominicanos, que saíram do templo, de crucifixo na mão, clamando vingança contra os inimigos da fé! Sempre, sempre, pelos séculos fora, a Igreja de Roma a espremer a esponja de fel e vinagre nos lábios sequiosos de Jesus! A plebe acende-se de raiva… Cresce em número e em ousadia! E sempre os dois frades dominicanos, à frente, a por em brasa a “pobre gente”!... Nisto, um terceiro “tonsurado” sobre ao púlpito e faz uma prática, incitando aos maiores crimes… Era a vos do Inferno, em labareda, que saía da boca do frade e enfurecia o povo, pondo-lhe a alma negra como a face dos demónios! Juntou-se à plebe da capital a marinhagem de navios holandeses que estavam no Tejo… Tudo correu para as ruas…Quantos cristãos-novos encontraram, quantos foram mortos e queimados em grandes fogueiras acesas no Rossio e na Ribeira! Só nesse domingo assassinaram passante de quinhentas pessoas – relata Damião de Góis.
Com a noite recrudesceu a desordem e na segunda-feira continuou a matança. Não encontravam na rua os Judeus? Arrombavam-se as portas das casas, arrastavam-se os moradores e… mulheres, velhos, crianças, todos, vivos ou mortos, eram lançados às fogueiras! Alguns fugiam de suas casas, corriam às igrejas, subiam aos altares e abraçavam-se às imagens dos santos, esperançados em que a misericórdia de Deus os livraria do suplício injusto! Mas não: a fera, atiçada pelos representantes do papa, aquecida pela onda de ferocidade que espraiava para além fronteiras, o tribunal de Torquemada, ia ali arrancá-los e matá-los sem distinção de sexo nem de idade. E as casas de todos eles eram saqueadas! E não eram só eles. Até cristãos-velhos eram mortos e roubados! Carnificina e pilhagem, em nome de Jesus!!!
Pura renegação da ideia cristã!
O Cristo – imagem-resplendor do Bem, da Paz e do Amor – chama de luz que resplandeceu pela última vez no coração dos Apóstolos, Seus companheiros tão queridos – era assim arrastado no opróbrio – era assim esbofeteado nas próprias chagas do corpo macerado – era assim cuspido nos lábios, crestados pela esponja da ignomínia, e nos olhos que se apagaram numa derradeira súplica de perdão.
Embora tendo afrouxado a matança ao fim de segunda-feira, ainda continuou na terça!
À tarde deste dia… quando já estava acabada a revolta, entraram na cidade a restabelecer o sossego o corregedor Aires da Silva e o governador Álvaro de Castro.
O rei estava em Avis. Quando lhe deram conhecimento dos sucessos que lhe haviam de deslustrar o reinado, mandou o prior do Crato e o barão de Alvito inquirir de tudo e punir os culpados. Averiguou-se que, além dos estropiados, tinham sido assassinadas cerca de duas mil pessoas.
Foram enforcados os cabeças de motim, sem exclusão dos reverendos padres pregadores!

14/10/2010

O FUNDADOR DA INQUISIÇÃO PORTUGUESA

D. João III – Depois da matança de 1506, a política usou de mais tolerância – e os judeus portugueses puderam, enfim, viver sossegados com D. Manuel. E apesar dos horrores de um passado, sempre recente pela agudeza das dores causadas, os Judeus não deixariam, durante os quinze anos que decorreram, até à morte do rei, de pedir aos Deus de Israel que desse a mais longa vida ao monarca português.
É que eles anteviam o perigo no filho que lhe havia de suceder e que desde menino se mostrava inimigo fanático e encarniçado da raça hebraica.
Assim foi. Morto D. Manuel, subiu Dom João III ao trono – com dezoito anos apenas.
Além do que era, nele, próprio de nascença, um espírito curto e fanático – dois factos haviam de ter pesado profundamente no carácter do piedoso rei.
Diz Frei Luís de Sousa que D. João, em pequeno, deu uma queda da varanda do Paço de Santos, tendo ficado bastante tempo sem acordo e sem fala e “com uma ferida na testa de que lhe corria muito sangue”.
Concordaram os historiadores em que esta queda devia ter mais ou menos afectado o cérebro do príncipe. Depois…aquele célebre desastre do casamento!...
O pai preparou-lhe o consórcio com D. Leonor, filha de Filipe I de Espanha e irmã de Carlos V; mas, pensando melhor, desfez-lhe depois o noivado e casou ele próprio com ela, em 1518. pode avaliar-se a dor que assombrou subitamente o ânimo do príncipe que, demais a mais, dera todo o seu primeiro amor à princesa. Sabe-se que até deram a D. Leonor como…parvo! Mas ele não o era tanto, que não visse a patifaria que o pai lhe fez!...
A mágoa cravou-se-lhe na alma, e em todo ele se via quanto o mau acto de D. Manuel o mortificava. Mas era só isso; apenas o traía a tristeza. Nem uma palavra, nem um acto, ele teve ao de leve, pelo qual o pai houvesse, por sua vez, de lhe fazer censura.
E tudo isso o fez “concentrando, recolhido, dissimulado”… sempre a morrer pela madrasta…
“Oh estranha pena fera!
Desditosa vida cara!
Oh quem nunca cá viera,
E com seu pai não casara,
Ou em casando morrera!”

Como dizia o Camões no auto de El-Rei Seleuco.
E, entretanto, levou vida de lágrimas e de fel!... Mas não cedeu!
Depois de morrer D. Manuel, ainda se falou e se tentou… mas D. João desposou a outra irmã de Carlos V, D. Catarina.
Auto-de-fé em Lisboa - de uma
gravura da
"História das Inquisições"
Todo ele passou a ser fervor católico, fanatismo fradesco, canibalismo intolerante, vendo um único inimigo a esmigalhar, a reduzir a cinzas – inimigo do rei, do País, do povo e sobretudo dos padres e da Igreja Romana: - o judeu, o cristão-novo – o herege.
Partiu dele, só dele, da trava espessa do seu coração, o impulso para a fundação do tribunal sinistro!
Já no tempo de D. Manuel, o povo, instigado incessantemente pelo frade, pedia já Inquisição à “espanhola”, contra os Hebreus, conversos – por serem eles, pelo prisma da ignorância desse mesmo povo e conforma afiançava a clerezia corrupta, autores de quantos males afligiam o cristão em particular e toda a nação em geral.
Em 1525, reunidos, já por motivo de falta de dinheiro, as Cortes em Torres Novas, os representantes do povo, ao passo que se queixavam dos abusos dos fidalgos, do clero e da Corte, vociferavam contra os cristãos-novos…
Torturas da Inquisição - Desenho
de Manuel Macedo.
Foi fácil dar satisfação ao povo, no seu ódio ao Hebreu. Num abrir e fechar de olhos, alapardou-se a Inquisição por Lisboa e outras terras; e, de súbito, em cárceres improvisados, lançaram-se amontoam-se amordaçam-se, enterram-se vivos, torturam-se os cristãos-novos, aos centos, aos milhares…
Foi fácil satisfazer ao ódio do povo – amassado no fanatismo bronco e selvático do padre, dentro de uma sociedade crapulosa!
Vinham dos vários sítios de onde aproavam as caravelas, escravos mouros e negros, apenas baptizados, mas sem que alguém tentasse ao menos incutir-lhes a fé. Viviam aqui em concubinato e aceitavam-se relações entre eles e as pessoas livres. Os seus filhos até à terceira ou quarta geração, ainda que fossem baptizados, eram marcados com ferro em brasa, como novilhos ou potros, para serem vendidos. E então as mães, para livrarem os filhos desse destino infame, abortavam ou iam mesmo até piores crimes. Sempre debaixo de maus tratos, cada vez mais neles crepitava o ódio. E como o baptismo lhes não trazia vantagem de alívio, recusam-no. Queimavam-nos, por isso, com tições acesos, ou com cera, toucinho e outras matérias derretidas…
Se o livre queria remir a consorte cativa, “o senhor opunha-se – escreve Herculano – e não raro a pretensão dava lugar a cena de violência e de sangue, ou a ser vendida a pobre escrava, para terras longínquas, quebrando-se assim, por um ímpio capricho, os laços que santificara a Igreja!”
Torturas da Inquisição - Desenho
de Manuel Macedo.
Os confessores revelavam os segredos da confissão… Em geral, os pregadores de púlpito buscavam apenas honras e dinheiro, lisonjeando os auditórios! – “Um dos males que afligiam o Reino – diz Herculano – era a excessiva multidão de sacerdotes… Disputava-se pelas aldeias, as missas, os enterros, as solenidades do culto, com altíssimo escândalo do povo. Os sacerdotes casavam clandestinamente. E como, por terem tomado ordens, ficavam fora da jurisdição civil, declinavam a competência dos tribunais seculares… As mulheres, para os salvarem, envileciam-se, declarando-se concubinas! Sacrificavam-se!... E muitos deles chegavam, depois desse sacrifício de tudo, que elas faziam por eles, a abandonarem-nas… rasgando assim… com o mais infame dos impudores, todos os laços santos, embora secretos…”
O povo! Mas o povo ignorava mesmo a religião. A religião e a moral era isto… num país “que se lançava nos extremos da intolerância e onde se pretendia conquistar o Céu com as fogueiras da Inquisição; num país que expulsava de si ou assassinava judicialmente os cidadãos mais activos, mais industriosos e mais ricos! Entre o clero secular sobretudo, pululava a imoralidade, a devassidão, a crápula…”
E D. João III levantava empréstimos por todos os modos, para cobrir a miséria em que o País caiu, depois que se renegou a politica de D. João II e a Nação se entregou, bêbada de prazer e de sangue, nas unhas da Igreja! Só o juro do dinheiro negociado na Flandres era um pavor! Chegou a exceder a importância do capital! Para se avaliar, o rei reuniu as cortes de Almeirim e pediu ao terceiro estado 200 000 cruzados. Deram-lhe cinquenta mil…
Era só para isto que D. João III reunia as cortes! E, tendo reinado, por fatalidade, trinta e sis anos, apenas as reuniu três vezes!
“Depois, mandou escrever cartas às pessoas abastadas do Reino, significando a cada uma com quanto desejava que concorresse.”
Uma vergonha! E era este o fundador da Inquisição. O que havia de ser o povo, no meio de toda crápula em que a nação se aviltava?!

01/10/2010

A INQUISIÇÃO EM PORTUGAL: A NÓDOA PORTUGUESA

Neste período entrou-se numa actividade frenética, tirando-se todo o partido legítimo e ilegítimo, lícito e ilícito, da bula de Maio de 1536. já se pode levantar bem a cabeça, em nome da lei do papado! E D. João III levanta-a e não perde o seu tempo: constroem-se prisões especiais para os réus de judaísmo, o edifício das Escolas Gerais converte-se em masmorras… mas tudo isso é pouco!
D. Pedro – o Regente na maioridade de Afonso V, mandara construir – na Praça do Rossio, em Lisboa, lado norte, um edifício destinado a habitação dos embaixadores estrangeiros… Por ter esse destino, se lhe chamava Paço dos Estaus. Foi ele quem salvou a insuficiência de cárceres. Instalou-se ali o Santo Ofício e ali se conservou até ao terramoto de 1775, sendo depois construído o Palácio da Inquisição.
Em Évora, logo desde 1536, em frente da Sé, no Largo do Marquês de Marialva, se erguia palácio próprio dos inquisidores. Foi o primeiro do país; e fizeram-se ali mais de vinte e duas mil condenações. Iam para lá os réus do Alentejo e do Algarve. A Inquisição de Coimbra satisfazia às necessidades piedosas da Igreja e do rei, nessa diocese e na da Guarda. Até chegou a funcionar o Santo Ofício em Lamego e em Tomar!
A Inquisição do Porto foi ordenada por D. João III em 1541 e instalou-se na Rua Escura, numas casas pertencentes a Fernão Aranha e a sua mulher Catarina Seixas. Houve naquela cidade um auto-de-fé em 11 de Fevereiro de 1543, para se mostrar à gente do Porto “quanto delicada era a justiça da Inquisição” – escreve no Há-Lapid, órgão da comunidade israelita do Porto, o capitão Barros bastos. O corregedor Francisco Toscano, quatro dias depois do auto, contava e el-rei o seguinte:
“…Esta provisão veio com outras do bispo, o qual logo fez ordenar tudo o que era necessário, e mandou fazer em um capo desta cidade, de onde estava a Porta do Sol, três cadafalsos pela ordenança dos de Lixª e a 11 deste mês de Fevereiro se fez o auto, em que houve 84 penitentes a saber, 4 que padeceram e 21 que se queimaram em estátuas, e 15 de cárcere perpétuo com sambenitos, e 43 penitenciados a cárcere temporal de 1 a 10 anos, e duas testemunhas falsas, as heresias destes (segundo as sentenças delatavam) foram muitas e graves e valeu aos de cárcere perpétuo, que pediram mesa, com muita contrição. O auto foi bem feito e sossegado, com boa ordem que nele houve, pôs grande espanto a gente desta terra, que nunca outro tal verão. Estimou-se a gente, que a ele veio assim desta terra como de fora, em 30 000 pessoas, e parece que esta justiça foi feita por vontade de deus, que chovendo os dias antes de muita água e vento, o dia do auto subitamente tornou mui sereno e claro; durou o auto com a queima até às 5 da tarde, nesta terra houve muito proveito, e fruto assim no espiritual como temporal depois que a Santa Inquisição é nela…”
Foram queimados vivos três homens e uma mulher; e dezasseis homens e cinco mulheres foram queimados em estátuas – diz o mencionado Sr. Barros Basto – “porque não desejando passar pela purificação do fogo, puderam fugir a tempo”. O que é certo é que, apesar dos “frutos” e do “proveito” que o corregedor atribui ao auto, não há noticia de ter havido outro no Porto e a própria Inquisição, ali, não pôde vingar, tendo sido extinto o tribunal em 1547. mas não magoava isso o ânimo da Igreja ou do rei: a Lisboa, Coimbra e às masmorras de Évora – chamadas covas da Inquisição – iriam parar os réus, ainda que viessem do…Paraíso!
E os Judeus fugiam quanto podiam! Chegavam naus carregadas de fugitivos a Ragaza, a Ferraria, a Veneza, a Ancora…Fugiam para a Inglaterra, para a França e sobretudo para os Países Baixos… E bem faziam os que podiam fugir!
Finalmente – Ao passo que, por um lado, o rei espremia no coração dos cristãos-novos todo o mal encontrado e inventado diabolicamente na bula de 1536, não desistia, por outro lado, de levar o pontífice a dar-lhe a Inquisição limpa de todo o “senão”!
Baltasar Limpo, o bispo e inquisidor do Porto, vai assistir ao Concílio de Trento, e quebra, enfim, todos os redutos. Tendo grande influência no Concílio, pugnou a favor do estabelecimento da Inquisição, sem restrições; e portanto a concessão do Santo Ofício a Portugal devia fazer-se conforme el-rei queria.
“O remédio da Igreja – dizia ele ao papa – está em evacuar os maus humores.”
Mas nem a influencia de Baltasar Limpo na assembleia conciliar, nem a simpatia da sua eloquência directamente sobre o ânimo do papa, teriam arrancado à Cúria o dó de peito, a nota final, que marca o termo do negócio vil de Roma, arrastado durante duas dezenas de anos, se não se desse ao pontifico o que ele ambicionava gulosamente!
A Inquisição foi finalmente instituída na sua forma mais completa e definitiva pela bula de 16 de Julho de 1547.
Em troca, Paulo III recebia as rendas do bispado de Viseu. “Dourou assim – escreve Alexandre Herculano – os seus últimos dias com os vis esplendores das torrentes de outro, que tinham sido o preço de um dos mercados mais infames que se encontram na história da humanidade… Os inquisidores de Portugal queriam carne humana: a Cúria subministrava-lha, mas na carta de aviso certificava aos compradores, que tinham de pagar à vista o preço da mercadoria: - as rendas da mitra de Viseu…
Só o neto de Paulo III, Alexandre Farnès, auferia do estabelecimento definitivo da Inquisição, em dinheiro corrente e em título seguro para o receber sucessivamente, perto de meio milhão de cruzeiros!”
E acrescenta o historiador insigne: “Os cristãos-novos que tinha logrado sair do País foram os únicos que escaparam…” No mais… “apodreciam nas masmorras, esquecidos até para o trato e para o suplício…”
O domínio absoluto do potro, da polé e da fogueira estabeleceu-se incontestavelmente na região das crenças religiosas, prevalecendo sobre a doutrina evangélica da tolerância e da liberdade… Muitos dos queimados, como Judeus convictos, morriam abraçados com a cruz, dando todas as demonstrações de sincero cristianismo – concordava o bispo de Chisano – mas observava que, apesar disso, era indispensável continuara a queimar os réus sentenciados, porque, se demonstrações tais pudessem salvá-los nessa hora tremenda, recorriam àquele expediente todos os verdadeiros hereges e nenhum seria punido!...
O século XVI – aquele século corrupto e feroz… tendo por inscrição no seu adito o nome obsceno de Alexandre VI, e por epitáfio em seu termo o nome horrível do castelhano Filipe II, o rei filicida, pode, em Portugal, tomar também para padrão, que lhe assinale metade do curso, o nome de um fanático, ruim de condição e inepto, chamado D. João III”.
Nódoa monstruosa, que surpreende e aflige ainda a alma portuguesa!